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Caetano na prisão – As canções
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9.9.2020

Caetano na prisão – As canções

No documentário Narciso em férias, de Renato Terra e Ricardo Calil, Caetano Veloso narra a sua prisão pela ditadura militar, de dezembro de 1968 a fevereiro de 1969, e cita algumas músicas que, por motivos diversos, fizeram o fundo sonoro daqueles dias sombrios. No capítulo com o mesmo título de seu livro Verdade tropical, o artista fala de outras canções. Joaquim Ferreira dos Santos juntou todas numa playlist, incluindo quatro extraídas do site Discografia Brasileira, e organizou, nos textos mais abaixo, as explicações dadas por Caetano.

Repertório

Onde o céu azul é mais azul (João de Barro, Alberto Ribeiro e Alcir Pires Vermelho) – Francisco Alves

Súplica (Otávio Gabus Mendes, José Marcílio e Deo) – Orlando Silva

Assum preto (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) – Luiz Gonzaga

Fracasso (Mário Lago) – Francisco Alves

F… Comme femme (Salvatore Adamo) – Adamo

O pequeno burguês (Martinho da Vila) – Martinho da Vila

Hey Jude (Lennon e McCartney) – The Beatles

Irene (Caetano Veloso) – Caetano Veloso e Gilberto Gil

Atrás do trio elétrico (Caetano Veloso) – Caetano Veloso

Terra (Caetano Veloso) – Caetano Veloso

Seleção e texto: Joaquim Ferreira dos Santos

Súplica – Preso numa solitária no quartel da Polícia do Exército (na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, Zona Norte do Rio), Caetano ouve “um velho comunista nordestino” que ocupava a cela ao lado. Ele pede que Caetano cante Súplica (“uma estranha valsa em versos brancos”, segundo o cantor em seu livro), que fez sucesso ao ser gravada por Orlando Silva em 1940. O fato de ter cantado a música dias antes da prisão e de ela ter as palavras “apartamento”, “torpor”, “paredes frias” e “garoa”, tudo sugerindo sua vida em São Paulo (onde foi preso), fizeram com que Caetano iniciasse “uma teia de superstições poderosas”. A letra puxava para baixo e falava ainda em “esperança, morreste muito cedo”. A partir de Súplica, Caetano passaria a adivinhar acontecimentos no dia a dia da prisão de acordo com as músicas que ouvia.

Fracasso (Mário Lago) – Já em outro quartel, o dos paraquedistas, um oficial costumava pará-lo durante a caminhada no banho de sol para pedir que cantasse Fracasso, do repertório de Francisco Alves, gravada em 1946. Foi outra canção que Caetano botou em sua lista de maus augúrios. A letra, com a palavra “fracasso” repetida sete vezes, parecia se referir à sua situação. “Repetida por mim em tais condições – e ainda por cima vulnerabilizado como eu ficava pela beleza da música e a carga de emoções que ela despertava por seu valor histórico – tornava-se uma conjuração maligna em minha imaginação”. A canção passou a persegui-lo também na solidão da cela.

Onde o céu azul é mais azul – O samba-exaltação feito sob o Estado Novo, de Getúlio Vargas, e lançado por Francisco Alves em 1940, era outro pedido do oficial no banho de sol. Caetano estivera cantando a música dias antes da prisão, ressuscitada em sua memória por estar num espetáculo teatral que vira em São Paulo. O maestro Rogério Duprat, arranjador da Tropicália, gravou a música com sua orquestra em 1968. Caetano tinha se preparado para cantar essas músicas no documentário, mas não conseguiu e chorou quando as citou, por considera-las lindas e terem ficado estigmatizadas por prever má sorte. No programa Conversa com Bial, lamentou: “Não tenho que ter mais superstições com essas músicas, mas não deu para cantar. Voltei a ficar com medo delas. Não consigo nem falar direito, sem chorar, o título de Onde o céu azul é mais azul”.

Assum preto – Caetano explica no livro que a música parecia descrever sua própria condição e representava, como as outras, uma “senha para o inferno”. “O lúgubre baião que fala do caráter contraditório da liberdade desse pássaro que está mais preso do que os que vivem em cativeiro.”

F… Comme femme, O pequeno burguês e Hey Jude – Quase dois meses após ser preso, Caetano foi finalmente submetido a um interrogatório e dado como liberado pelo oficial responsável. Ficou, no entanto, preso por mais uma semana esperando que viesse de outra instância a liberação. Foi quando as músicas tocadas nos rádios dos soldados passaram a entrar em sua roleta de sorte e azar. No livro, ele cita F… Comme femme, canções de Roberto Carlos, sambas de Martinho da Vila (o primeiro LP do sambista saiu naquele início de ano, com o sucesso O pequeno burguês) e Hey Jude. A música dos Beatles era entendida por ele como “o mais forte indício de aproximação da soltura. E se a frase melódica, que se repete em tom triunfal ao fim dessa canção, soasse de repente – por ter o rádio sido ligado ou seu dono mudado subitamente de emissora – no exato momento de uma aspiração profunda, isso era antecipação de minha saída luminosa e feliz.”

Irene – Caetano diz que a figura da irmã Irene, com 14 anos, muito bonita, aparecia com frequência em sua mente. “Mais adorável ainda do que a sua beleza era sua alegria, sempre muito carnal e terrena, a toda hora explodindo em gargalhadas sinceras e espontâneas. Mesmo sem violão, inventei uma cantiga, que passei a repetir como uma regra: ‘Eu quero ir, minha gente/eu não sou daqui….’”. Caetano gravou a música em 1969, já no exílio em Londres.

Atrás do trio elétrico – Caetano saiu do quartel dos paraquedistas na quarta-feira de cinzas de 1969. Antes de ser preso, tinha gravado Atrás do trio elétrico, que acabou sendo o maior sucesso daquela temporada carnavalesca. “Mas naquelas tardes de mormaço do quartel, eu não pensava que as ruas de Salvador estavam cheias e que minha marchinha dominava”, recordou em Verdade tropical.

Terra – Numa de suas visitas, no quartel dos paraquedistas, Dedé, mulher de Caetano à época, levou uma revista “Manchete” que trazia na capa as primeiras fotos da Terra feitas por astronautas. A liberdade do espaço em contraste com a prisão o inspirou, anos mais tarde, a compor a canção.

Ouça Caetano comentando 54 de suas composições.